terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Estranhas falas de alcova

A mandrágora ardilosa da manhã passeia preguiçosa e devassa por sobre o meu corpo inocente; incipientes raios dourados de sol acariciam, voluptuosamente, nômades loucos pensares.

Roucas falas, exóticas falas estas, estranhas falas de alcova embrenhando-se por meus cabelos, jazidas gris saudosas dos anelos de teus dedos, trazidas em rápidas surtidas por este vento insolente.

Despretensioso, um desastrado lençol mostra, muito mais do que esconde, perigosamente, minha ávida carne morena, infiel depositaria de múltiplos recordares, cenas gravadas a ferro e fogo na mente.

Mariposas enxameiam, trêfegas, brejeiras, aquecendo langorosamente a tempestade de lava oculta em minhas veias, cicerones sacrílegas a desafiar esquecidos prazeres, narcísicos tateares.



De súbito, a mítica riqueza de tua ausência penetra pelos poros de minha pele, pobre pele indefesa, refém insatisfeita de teus esparsos desejos, lúdicas tardes, redomas de sonho a me atormentar.

Necessárias mentiras vestem desnudas verdades, poeticamente presentes em teus beijos, devolutos beijos expostos nesta solitária alcova, que me atrevo outra vez a degustar, réu reincidente.

Ziguezagueantes posturas, fartos mananciais de torturas, noites insones a me revirar, manhãs repetidas a te procurar, táteis monólogos desconexos propiciando orgasmos complexos, insuspeitos espasmos adolescentes.

Suave música de fundo, gemidos do âmago do mundo impossíveis de sufocar, lento provar de mim mesmo, mergulhado em utópico lago, a esmo, inutilmente tentando te achar.



Cambaleante, banha-me a tépida água do chuveiro, infundindo-me o pleno conscientizar deste infausto quarto solteiro, eu você mesmo, onírico ensejo - impossível de transmutar.

Guerra perdida antes de começar, intransitivamente há que se quererem dois imersos em idêntico amar; lábios a murmurar preces obscenas, anjos avessos, melancólicas melenas, rosas murchando em conflito.

Chamas geladas, inférteis, unilaterais embates aflitos, bipolares vates contritos, recitais de tresnoitadas estrofes perversas, poemas em escrita inversa, aves arribando aos gritos.

Maçãs rasgadas em pedaços, teu gosto em minha boca retido, exilar-me em tua masmorra de abraços, dissolver-me em ingentes ganidos; não mais só: mas contigo – alquimia que quero alcançar.





Há quem anseie por amores pacíficos, harmônicos. À revelia destes, prefiro os tempestuosos, capazes de me lançar a inóspitos rochedos de ansiedade, maximizando ao extremo a necessidade de estar junto, de saciar, arrebatado, em um único e atordoante beijo, toda a paixão represada por séculos de ausência. É este amor diferente que quero para mim, capaz de em uníssono vôo, andarilhar com minha alma inquieta por toda a eternidade.





Vale do Paraíba do sul, manhã do último Domingo de Novembro de 2009



João Bosco (aprendiz de poeta)http://pensaromundo.spaces.live.com/PersonalSpace.aspx?_c01_

Amor aos pedaços

Teus grandes olhos, olhos infantis assustados, a me espreitar interrogativos, traquinam em volta de mim.

Os meus olhos, olhos cansados do mundo, fugitivos, emaranham-se por tua pele, repousando no teu jardim.

Meus lábios bebem na fonte nacarada de tua boca, doce fluxo de palavras, manancial de beijos, beijos maduros sem fim.

Dói te amar aos pedaços, pedaços que roubas de mim, antropofágicos dentes cravados, nãos transformados em sim.

Amar tão confuso, tardio, luta travada em silêncio, unhas causando arrepios, fluidos a se misturar.

Estrelas de olhos vendados, grama macia convida, tépida noite atrevida, inversos abraços - gemidos de amor ao luar.

Represas rompendo, intranqüilas, notas insuspeitas a surgir, teus túrgidos seios, eriçados- pêssegos a se degustar.

Náufragas frases permeiam corpos siameses em cio; antigos quereres libertos, longínquos anseios mais perto – sede prá se saciar.

Amar de outra forma não sei: aprendi a amar só por inteiro, amar de maneira completa - agora te amando aos pedaços, um tipo de amor canibal.

Amor que de mim leva em teus dentes, amor que te quero comigo, sonhando acordado contigo – fantasia se tornando real.

Amar tão intenso alucina, maximiza desejo visceral, de te abraçar sem intervalo, sem pausa, em um tempo sem início ou final.

Nestes versos revejo outra vez, os pedaços de amor que trocamos, meus pedaços com os teus misturados, enfim formando um amor único, total.

Ao ver o teu corpo estendido ao meu lado, após o amor, e perceber que um enorme sentimento de ternura invade toda a minha alma, então tenho certeza de que amo a mulher que está ali. Cuidadosamente, beijo-te cada um dos teus olhos, mordiscando a tua orelha, a enfatizar a minha certeza – eu amo muito você.

Vale do Paraíba, noite do primeiro Sábado de Dezembro de 2009

João Bosco (Aprendiz de poeta)

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Alienação como "concupiscência"

Paul Tillich, Teologia Sistemática, p 346-349
A qualidade de todos os atos em que o ser humano se afirma existencialmente apresenta dois lados: um em que o ser humano separa seu centro do centro da vida divina (descrença) e o outro em que ele se converte em centro de si mesmo e de seu mundo (hybris). Surge naturalmente a pergunta por que o ser humano se sente tentado a se transformar em centro de si mesmo. A resposta é que isso o coloca na posição de arrastar a totalidade de seu mundo para dentro dele mesmo. Eleva-o acima de sua particularidade. Essa é a tentação do ser humano em sua posição entre a finitude e a infinitude. Cada indivíduo, por estar separado da totalidade, deseja uma reunião com o todo. Sua "pobreza" o impulsiona a buscar a abundância. Essa é a raiz do amor em todas as formas. A possibilidade de alcançar abundância ilimitada é a tentação do ser humano. que é um eu e possui um mundo. O nome clássico para esse desejo é concupiscentia, "concupiscência" - o desejo ilimitado de atrair a realidade toda para o próprio eu. Este desejo refere-se a todos os aspectos da relação que o ser humano estabelece consigo mesmo e com seu mundo. Refere-se tanto à fome física como ao sexo, tanto ao conhecimento como ao poder, tanto à riqueza material como aos valores espirituais. Mas esse sentido todo-abrangente da concupiscência frequentemente foi reduzido a um sentido muito especial, a saber, ao desejo do prazer sexual. Inclusive teólogos como Agostinho e Lutero, que consideravam o pecado espiritual como básico, tenderam a identificar concupiscência com desejo sexual. É compreensível que Agostinho sustentasse essa concepção, pois nunca superou a depreciação helenística e, sobretudo, neoplatônica do sexo. Mas é inconscistente e difícil de compreender que resquícios dessa tradição perdurem na teologia e na ética dos Reformadores. Eles nem sempre rejeitam claramente a doutrina não-protestante de que o pecado "hereditário" está enraizado no prazer sexual do ato de geração. Se a palavra "concupiscência" é usada nesse sentido limitado, ela certamente é incapaz de descrever o estado de alienação geral, e seria preferível que a abandonássemos completamente, pois a ambiguidade dessa palavra é uma das muitas expressões que causam a ambiguidade da atitude cristã frente ao sexo. A igreja nunca foi capaz de abordar adequadamente este problema ético e religioso central. Assim, pois, explicitar agora o pleno significado de "concupiscência" pode contribuir eficazmente para resolver esta situação.
A doutrina da concupiscência - considerando-se o termo em seu sentido todo-abrangente - pode ser confirmada por muito material e percepções profundas da literatura existencialista, da arte, da filosofia e da psicologia. Bastará mencionar primeiro alguns exemplos, alguns dos quais expressam o sentido de concupiscência em figuras simbólicas, outros em forma de análise. Quando Kierkegaard descreve a figura do imperador Nero, ele recorre a um tema do cristianismo primitivo para elaborar uma psicologia da concupiscência. Nero corporifica as implicações demoníacas do poder ilimitado; ele representa o indivíduo que conseguiu vincular à sua pessoa o universo mediante o exercício de um poder que utiliza em proveito próprio tudo aquilo que lhe aprouver. Kierkegaard descreve o completo vazio interior desta situação que conduz à determinação de causar a morte a tudo o que encontra, inclusive a si próprio. De forma similar, ele interpreta a figura de Don Juan de Mozart, criando a figura de Johannes, o sedutor. Aqui, com a mesma penetração psicológica, mostra-nos o vazio e o desespero do impulso sexual ilimitado que impede uma união de amor criativa com a parceira sexual. Neste caso, como no símbolo de Nero, é visível o caráter autodestrutivo da concupiscência. Poderíamos acrescentar como terceiro exemplo a figura do Fausto de Goethe, cujo impulso ilimitado se dirige ao conhecimento, ao qual se subordinam tanto o poder quanto o sexo. Para "saber tudo", Fausto aceita o pacto com o demônio. O que produz a tentação demoníaca não é o conhecimento como tal, mas o "tudo". O conhecimento como tal, assim como o poder e o sexo como tais, não constitui um objeto de concupiscência, mas o desejo de vincular cognitivamente o universo em si mesmo e à própria particularidade finita.
É o caráter ilimitado do desejo de conhecimento, de sexo e de poder que torna estes desejos sintomas de concupiscência. Isso foi elaborado em duas descrições conceituais de concupiscência: a "libido" de Freud e a "vontade de poder" de Nietzsche. Ambos os conceitos contribuíram imensamente para a redescoberta da concepção cristã da condição humana. Mas ambos ignoram o contraste entre o ser essencial e o ser existencial do ser humano e interpretam o ser humano exclusivamente em termos de concupiscência existencial, omitindo qualquer referência ao eros essencial do ser humano, eros que se vincula a um conteúdo definido.
Segundo Freud, a libido é o desejo ilimitado do ser humano de se liberar de suas tensões biológicas, especialmente das sexuais, e obter prazer dessa liberação de tensões. Freud mostrou que elementos libidinosos estão presentes nas experiências e atividades espirituais mais elevadas do ser humano, e, com isso, redescobriu percepções subjacentes às tradições monásticas de exame rigoroso de consciência, tais como se praticavam no cristianismo primitivo e medieval. A ênfase de Freud nesses elementos, que não podem ser separados dos instintos sexuais do ser humano, está plenamente justificada e concorda com o realismo da interpretação cristã da condição humana. Não deveríamos rejeitar o pensamento freudiano em nome de falsos tabus sexuais que são apenas pseudocristãos. Freud, em seu realismo honesto, é mais cristão do que esses tabus. Desde um ângulo específico, descreve com toda a exatidão o que significa concupiscência. Isso é especialmente óbvio na forma como Freud descreve as conseqüências da concupiscência e de seu impulso nunca satisfeito. Quando ele fala do "instinto para a morte" (Todestrieb) que traduziríamos mais adequadamente por "pulsão para a morte"), ele descreve o desejo de fugir da dor suscitada por uma libido nunca satisfeita. O ser humano, como todo ser superior, deseja retornar ao nível inferior de vida do qual proveio. A dor provocada pelo nível superior o induz a refugiar-se no nível inferior. É a libido nunca satisfeita no ser humano, esteja ou não reprimida, que produz nele o desejo de desfazer-se de si mesmo como ser humano. Nestas observações referentes à "insatistação" do ser humano com sua criatividade, Freud penetrou mais profundamente na condição humana do que muitos de seus seguidores e críticos. Até este ponto uma interpretação teológica da alienação humana fará bem em seguir as análises de Freud.
Mas a teologia não pode aceitar a doutrina freudiana de libido como uma reinterpretação suficiente do conceito de concupiscência. Freud não percebeu que sua descrição da natureza humana só é adequada ao ser humano em sua condição existencial, mas não em sua natureza essencial. O caráter infinito da libido é uma das marcas da alienação do ser humano que contradiz sua bondade essencial ou criada. Na relação essencial do ser humano consigo mesmo e com seu mundo, a libido não é concupiscência. Não é o desejo infinito de vincular o universo à sua existência particular, mas um elemento do amor unido a suas outras qualidades - eros, philia e agape. O amor não exclui o desejo; ele contém em si a libido como um dos seus elementos. Mas a libido que está unida ao amor não é infinita. Como todo amor, ela tende para um sujeito definido com quem deseja unir o portador do amor. O amor quer o outro ser e o quer na forma de libido, eros, philia ou agape. A concupiscência, ou libido distorcida, quer o próprio prazer através do outro ser, mas não quer o outro ser. Esse é o contraste entre libido como amor e libido como concupiscência. Freud não estabelece essa distinção por causa de sua atitude puritana em relação ao sexo. O ser humano só pode chegar a ser criativo mediante a repressão e a sublimação da libido. Na concepção de Freud, não existe eros criativo que inclua o sexo. Comparado com homens como Lutero, Freud é um asceta nesta sua pressuposição básica acerca da natureza do ser humano. O protestantismo clássico nega esses pressupostos no que tange ao ser humano em sua natureza essencial ou criada, pois nesta é real o desejo de se unir com a pessoa que é o objeto do amor pelo bem dela. E esse desejo não é infinito, mas definido. Não é concupiscência, mas amor.
A análise do conceito freudiano de libido produziu importantes percepções da natureza da concupiscência e de seu oposto. Outro conceito, igualmente importante para a teologia cristã, é a "vonta de poder" de Nietzsche. Uma das formas pelas quais ele influenciou o pensamento contemporâneo é através da psicologia do profundo que interpretou a libido humana mais em termos de poder do que em termos de sexo. Mas existem outras formas, mais diretas, especialmente na política e na teoria social, pelas quais o conceito de Nietzsche influenciou o pensamento contemporâneo. "Vontade de poder" é, em parte, um conceito e, em parte, um símbolo. Portanto, não se deve entendê-lo literalmente. Na expressão "vontade de poder", vontade não significa um ato psicológico sobre o ser humano. A vontade consciente de obter poder sobre os seres humanos está enraizada no desejo inconsciente de afirmar o próprio poder de ser. "Vontade de poder" é um símbolo ontológico para a auto-afirmação natural do ser humano na medida em que o ser humano tem o poder de ser. Mas não se restringe ao ser humano, pois é uma qualidade de tudo o que existe. Pertence à bondade criada e é um símbolo poderoso da auto-realização dinâmica que caracteriza a vida.
Mas, como a "libido" de Freud, também a "vontade de poder" de Nietzsche acaba sendo confusa se não estabelecermos com clareza a diferença entre a auto-afirmação essencial do ser humano e seu desejo existencial de ilimitado poder de ser. Nietzsche segue a doutrina de Schopenhauer, que considera a vontade como força motriz ilimitada em todo ser vivo, produzindo no ser humano o desejo de alcançar a quietude mediante a autonegação da vontade. Nesse sentido, é óbvia a analogia entre Schopenhauer e Freud. Para ambos, é o desejo infinito e nunca satisfeito que conduz o ser humano à autonegação. Nietzsche tenta superar essa tendência proclamando enfaticamente uma coragem que assume as negatividades do ser. Nesse ponto, é influenciado pelo estoicismo e pelo protestantismo. Mas, em contraste com ambos, ele não nos mostra as normas e princípios pelos quais devemos julgar a vontade de poder. Ela permanece ilimitada e apresenta traços demoníaco-destrutivos. Trata-se, pois, de um novo conceito e de um novo símbolo da concupiscência.
Nem a libido nem a vontade de poder são em sí características da concupiscência. Ambas se tornam expressões da concupiscência e da alienação quando não estão unidas ao amor e, portanto, quando carecem de todo objeto definido.