terça-feira, 24 de novembro de 2009

A parcialidade positiva do juiz

Gerivaldo Neiva

A parcialidade positiva do juiz

Na democracia, a confiança no correto exercício da atividade jurisdicional, “no bem fazer dos magistrados”, é pressuposto indispensável para se alcançar o adequado e necessário clima de pacificação social e convivência harmônica entre os concidadãos. [...]

Este novo alicerce do princípio do direito fundamental ao juiz imparcial deve refletir as insatisfações sociais com os resultados até então apresentados por um Poder Judiciário que, apesar de seu ótimo padrão estrutural tecnológico, ainda fornece resultados pífios representativos de um país periférico vitimizado pela ordem globalizada, perversa e injusta de um sistema mundo dominante. [...]

A desigualdade social, econômica e cultural deve ser a mola propulsora para se postular um nova leitura da (im)parcialidade do juiz, uma leitura que não deixe de levar em consideração essa grave distorção interiorizada no âmbito do processo penal e civil. [...]

Objetiva-se, finalmente, evidenciar, por meio de um pensamento crítico-filosófico, a parcialidade positiva do juiz...[...] Deseja-se, na verdade, aflorar no processo a figura do ser humano vivo e concreto, abandonando-se a concepção abstrata de “parte processual.” [...]

Ao se postular a “neutralidade” na função de julgar, distante dos conflitos internos e externos do magistrado, eleva-se essa imagem pública a um corolário sobre-humano ou divino, o que, na verdade, nada mais significa do que um produto de manipulação da imaginação coletiva que passa a assimilar e a exigir uma conduta do juiz nessa perspectiva. [...]

É utópico pretender-se que o juiz não seja cidadão, que não se vincule a certa ordem de idéias, que não compreenda o mundo segundo uma visão nitidamente personalíssima e individual. [...]

Não se é castrando o juiz da possibilidade de exercício de direitos fundamentais que são conferidos aos cidadãos brasileiros de uma maneira geral, que se irá eliminar do seu íntimo, de sua subjetividade, as suas preferências ideológicas e partidárias. Não é porque há uma previsão constitucional de que o magistrado não se pode filiar a partido político, que tal fato, por si só, produzirá um juiz “asséptico” ou um juiz “enuco político.” [...]

Os juízes, como pessoas de seu tempo, são plenamente partícipes de uma mentalidade ideológica muitas vezes perniciosa a uma dada sociedade. Tendo em vista inexistir “neutralidade” ideológica, é utópico o pensamento idealizador de um juiz super-homem, acima de sua falibilidade humana, além do bem e do mal.

É inegável que o magistrado não pode permanecer vinculado à ordens ou ao programa partidário político; contudo, é insustentável pretender que um juiz não pertença a uma determinada concepção de idéias, que não se vincule a determinados postulados sociais, que não tenha uma compreensão do mundo, uma visão da realidade[...] o “juiz enuco político” de Griffith não passa de uma ficção absurda, uma imagem irreal, uma impossibilidade antropológica. [...]

A própria tarefa de interpretar a lei não é uma atividade neutra e imparcial, pois, diante de um caso concreto, o resultado da interpretação não é idêntico para um liberal e um conservador, um socialista ou um democrata-cristão. [...]

O discurso jurídico, de uma maneira geral, configura-se como um espelho fiel da ideologia dominante, não ficando, evidentemente, os operadores do direito alheios a essa manifestação ideológica reinante. [...] Na realidade, todas as construções normativas jurídicas são permeadas por ideologia política, social e ética do momento histórico em que são elaboradas. [...]

A (im)parcialidade do juiz não deixa de ser alvo dessa pretensão ideológica que está por detrás do discurso jurídico. Esse discurso, que representa a forma de comunicação desenvolvida na relação jurídica processual, encontra-se carregado de manipulação ideológica, sendo o juiz, por vezes, um mero instrumento de sua aplicação e propagação. [...]

O juiz ao concretizar o exercício do poder pelo processo deverá fazer uma opção normativa, segundo a apreensão epistemológica realizada pela sua atividade cognitiva, conduzida tanto pelas diretrizes ideológicas das partes, da sociedade, como pela formação ideológica, cultural, social, política e porque não dizer psicológica dele próprio. [...]

O conhecimento do juiz no processo não se dá por uma atitude imparcial (passiva), mas pela interação do meio processual, das partes, e de sua própria experiência do mundo que é construída e se deixa construir. [...]

Indicados os princípios e fundamentos constitucionais de um processo penal ou civil democrático, abre-se oportunidade para se estabelecer os direitos e as garantias fundamentais que devem ser observados e respeitados na relação jurídica processual, entre eles, o direito a um juiz positivamente parcial. [...]

Pragmaticamente, para o pensamento idealista formal e abstrato, considera-se concretizado o contraditório e a ampla defesa com a simples nomeação de defensor técnico para aquele que não tenha condições financeiras para arcar com o custo de um advogado, pouco importando o resultado concreto e efetivo do trabalho desenvolvido pelo profissional nomeado. [...]

O que se deseja realçar por meio desse exemplo cotidiano é a necessidade de se superar a visão meramente formal e idealista do princípio da igualdade no processo penal ou civil, bem como colocar em questão a efetiva eficácia do princípio da igualdade diante das sociedades capitalistas e neoglobalizadas, como a nossa. [...]

Exige-se um desafio muito mais eloquente, ou seja, a derrubada das barricadas, especialmente as sociais e econômicas, consistentes em fatores de desigualdades reais das partes na relação jurídica processual. Sem isso, para muitos o caminho para a justiça permanecerá intransitável. [...]

A “parcialidade positiva do juiz” tem por finalidade a efetivação material dos princípios fundamentais previstos na Constituição Federal. [...] Se é dever da República a construção de uma sociedade mais justa, solidária, erradicando-se a pobreza e as desigualdades sociais, e sendo a atividade jurisdicional uma atividade proveniente da República Federativa do Brasil, não há dúvida de que a realização desses fins e a execução dessas tarefas também hão de ser desenvolvidas no âmbito do processo civil ou penal. [...]

É na ética como ciência normativa que se irá estabelecer uma nova leitura para (im)parcialidade do juiz, para justificar um comportamento que leve em consideração as diferenças sociais, econômicas, culturais daqueles que participam da relação jurídica processual penal ou civil. [...]

A venda da deusa da Justiça necessita ser retirada para que se possa reconhecer no processo a racionalidade de outro, a sua diferença sociocultural-político-econômica. A balança, diante da realidade latino-americana, deve ser desequilibrada, a fim de representar as desigualdades sociais, econômicas e culturais existentes num continente regrado por injustiças sociais. E a espada, por fim, deveria ser substituída por uma “lupa”, para que se possam avistar as concepções ideológicas que existem por detrás de um determinado ordenamento jurídico de cunho capitalista e neoglobalizante.

SOUZA, Artur César. A parcialidade positiva do juiz. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.

Postado por Gerivaldo Neiva às 07:23 1 comentários
segunda-feira, 23 de novembro de 2009
A substancial inconstitucionalidade da lei injusta
Professor Juarez Freitas (fotografia divulgada no livro)

O problema da injustiça das leis torna-se, não raro, central, mormente quando é intenso o contraste entre os valores do ordenamento jurídico positivo e o sentimento de justiça preponderante na sociedade, a qual é – ou deveria ser – epistemologicamente, a fonte jurídica por excelência. [...]

Por outra parte, não se podem aceitar os sofismas e as falácias que, durante séculos, fizeram da lei, ou da idéia de lei, um instrumento exterior ao homem, alheio ao seu íntimo consentimento. O correto é sustentar que a lei, quando rechaçada pela maioria da população, sobretudo pelos espíritos mais desinteressados, é a tal ponto despótica que falecem seus atributos de lei ou se os infirmam parcialmente, por não conseguir ser uma imagem física da lei social. [...]

Cabe ao jurista, neste caso, alicerçando sua postura nos princípios gerais do direito, opor-se a lei que, por iníqua, contrarie tais princípios, os quais garantam a juridicidade ético-política do próprio sistema. [...]

Assim, é preciso que o julgamento do “jurídico”, como todos os riscos que tal idéia implica, não mais se divorcie do problema ético da justiça, fazendo-se com que o Poder Judiciário, assumido como Poder, deixe de ser um mero aplicador do Direito Positivo para ser o garantidor dos princípios da justiça. [...]

O Direito deve, bem compreendido, buscar o prudente, o razoável, tendo-se em vista que seus juízos não são apodíticos ou dogmáticos. Por isso, se quisermos fazer evoluir o Direito, dele, um a um, devemos afugentar todos os dogmas. [...] O Direito não é, como querem os formalistas, tão somente reino da necessidade. O Direito é o reino da liberdade e da necessidade. Uma e outra se constituem mutuamente. Não pode assim o julgador, de modo simplório, operar exclusivamente com silogismos, pois, se é verdade que este é instrumento útil de que se vale o entendimento, no campo jurídico é de todo desaconselhável abstrairmo-nos da interpretação e da dinamicidade das coisas, pois, em abstraindo-nos, estaremos renunciando ao irrenunciáveis poderes éticos do juiz. [...]

O intérprete precisa pôr-se a caminho do bom senso e da coragem, valendo-se do método integrativo, oposto ao exegetismo positivista, para declarar inconstitucional até mesmo aquele mandamento inserido na própria Constituição que contrariar os princípios políticos e democráticos que ministram ao sistema jurídico a eficácia real e oferecem à Constituição o seu fundamento. O intérprete Constitucional deve, por conseguinte, ligar-se á concretude da existência. [...]

Nesta ótica, a hermenêutica dialética prioriza a relação humana, concreta, superiormente à relações formais, como meio de impedir que as partes processuais sejam tratadas ou reduzidas à condição de coisas, o que é o oposto de qualquer expressão de justiça. [...]

Assim, a tarefa do intérprete é buscar um sentido justo das normas jurídicas, as quais, como normas de conduta, sempre possuem duas facetas: uma justa, outra injusta. Os intérpretes, conscientes desta dialeticidade, mormente os aplicadores do ordenamento jurídico, devem exercer uma hermenêutica recriadora do sentido da norma de Direito Positivo, adequando-a, quando possível, à sua função social...

Apenas reiteramos que o Direito é aquilo que a sociedade e a jurisprudência dizem que o é, sendo todos os silogismos aplicados à decisão judicial de caráter dinâmico-político, daí resultando os efeitos integrativos e criativos em todas as sentenças. [...]

Necessita, portanto, o juiz de uma intuição especial, vale dizer, de consciência clara de sua experiência criativa ou de uma capacidade de juízo que lhe permita afastar a lei injusta, a despeito do mito ingênuo e ideológico da “vontade da lei”, ou da “vontade do legislador” (as quais jamais são unívocas), percebendo o universal no concreto. Caso contrário, o juiz raciocinará no vazio e, comodamente, criará uma fronteira entre os ditames categóricos de sua razão consciencial e o seu afazer profissional, como se tal muro não fosse o muro da vergonha, erigido pelo gosto neopositivista de sacrificar a moralidade à legalidade em nome de um utilitarismo ou consequencialismo altamente comprometedores. [...]

Portanto, além de poder decidir praeter legem, o juiz pode e precisa decidir contrário à interpretação indevida de uma lei injusta, se não quiser suscitar um divórcio entre o Direito e a moral, como o sustentado por todos os positivistas que colocam em planos distintos sociedade civil e poder, Estado e realidade; o que é, a cada dia, mais inadmissível. [...]

Em suma, somos todos criadores do Direito, e o juiz, à luz da mais avançada hermenêutica, se bem souber aproveitá-la, só aplica a lei injusta se quiser, podendo, em todas as hipóteses, considerá-la inconstitucional.

FREITAS, Juarez. A substancial inconstitucionalidade da lei injusta. Petrópolis: Vozes; Porto Alegre: EDIPUCRS, 1989.
Postado por Gerivaldo Neiva às 07:40 0 comentários
domingo, 22 de novembro de 2009
Juiz Alternativo e Poder Judiciário
Lédio Rosa de Andrade é Desembargador do TJ de Santa Catarina


O presente livro é uma proposta alternativa à atual prática do Poder Judiciário. A forma tradicional de os magistrados operarem não atende às demandas sociais, antes isola, um do outro, o Poder e sociedade. Isto ocorre em consequência de a prestação jurisdicional estar alicerçado no positivismo jurídico, atrelando o ato de julgar a um procedimento técnico formal.

Judicando sob a fictícia neutralidade, os magistrados desconsideram, ao decidir, as forças sociais em ação, e contribuem para a mantença da sociedade estratificada. Assim, o Poder Judiciário convive com a inaceitável realidade socioeconômica, sem ponderar, sequer a necessidade de alterar seu comportamento. [...]

Independente do sistema jurídico a ser enfocado, a Ciência do Direito pode ser analisada duas formas distintas. A primeira, de visão dogmática, caracterizada pela postura tradicional, formal, com base em preceitos preestabelecidos. A segunda, antípoda desta, caracterizada pela criticidade, onde nada é admitido como certo, imutável, absolutamente justo e universal. Lá, a certeza é a pauta; aqui, o questionamento é a fonte básica da investigação. Divergem, sobretudo, quando ao comprometimento do Direito com a realidade social. Os dogmáticos prendem-se ao seu estudo isolado, fora do contexto social, restringindo-se à esfera jurídica, não perquirindo suas consequências na vida cotidiana da sociedade. Uma vez obedecidos os princípios formais, estará o Direito legitimado, as suas teorias tidas como justas, não se considerando as relações sociais concretas. Os juristas tradicionais afastam-se e fazem afastar o Direito dos problemas mundanos, como se não existissem interligação e interdependência entre eles. Dicotomizam o ser humano em jurista e cidadão. Os críticos da dogmática, ao contrário, preocupam-se menos com as questões formais do Direito, buscando aferir a repercussão de sua aplicação no viver afetivo das pessoas. [...]

A Ciência Jurídica deve ser entendida, em si mesma, como uma possível força transformadora, transcendendo a função de apenas interpretar os textos legais. Pode, inclusive, via um processo hermenêutico emancipador, dar novo sentido às leis, procurando adaptá-las aos interesses da coletividade. A teoria crítica do Direito é forma de encaminhar a magistratura ao seu verdadeiro papel. [...]

As formas dogmáticas de agir vêm corroendo e desfigurando a função da magistratura. O juiz de Direito, frente à ineficácia da prestação jurisdicional, está perdendo sua identidade, pois, não tendo uma função social, sua existência não se justifica, senão para atender a pouco e a si mesmo. [...]

Com resultado de um convívio cotidiano afastado da massa obreira, os magistrados, em sua maioria, pensam e agem a partir de um raciocínio excludente, circunscrito ao meio social de que participam. Mesmo aqueles oriundos de classes pobres, quase sempre se esquecem do passado, adoram a nova vida com um pouco de fartura e passam a pensar com um novo imaginário, voltado, por óbvio, para os interesses do seu novo meio, pois ali formam sua consciência. [...]

Não se pode desconsiderar, sob condição de ingenuidade, de existirem muitos magistrados perfeitamente conscientizados de sua posição. Sabem que trabalham em prol de uma classe e gostam disso, pois a ela pertencem e desejam manter essa situação, em proveito próprio e dos seus. [...]

Deseja-se, portanto, um novo magistrado, desmistificado, comprometido com a sociedade civil, judicando com paixão, empenhado na busca da mínima possibilidade de felicidade. [...]

A substância da proposta não está no mero julgamento contrário à lei. Trata-se de uma nova visão, global, atitude a ser tomada, se possível, pelo conjunto dos juízes ou, pelo menos, pela maioria, buscando exercer a magistratura em favor das classes oprimidas e, de fundamental importância, que essa visão venha a ser hegemônica entre os magistrados ou, pelo menos, possa contrabalançar a forte estrutura dogmática positivista hoje existente. [...]

Entende-se possível a transformação social por formas pacíficas, podendo, os magistrados, participar dessa liça com destaque, desde que entendam o lugar por eles ocupado, percebam a quem tem servido sua forma de atuar e modifiquem sua prática judicial.[...]

À magistratura alternativa, a partir da ótica explicitada, compete construir um espaço onde um juiz de direito possa fazer da judicatura uma atividade transformadora, agente histórico em prol da comunidade. Desta forma, todos os despachos, todas as decisões interlocutórias, todas as sentenças proferidas por um magistrado devem conter um compromisso ético com a moral e a justiça popular. [...]

Para alcançarmos plenitude jurídica, necessários se faz estender a toda a população uma vida materialmente digna, possibilitando condições não só de sobrevivência, mas de viver com inteireza sua existência. [...]

Cabe ao juiz optar entre permanecer entretido em julgar ficções e imaginações, enquanto a sociedade se desagrega, ou alterar seu comportamento, assumindo sua responsabilidade pelo resultado social da prestação jurisdicional. “Ousar é um privilégio dos que tem coragem.” (Warat).

ANDRADE, Lédio Rosa de. Juiz Alternativo e Poder Judiciário. 2 ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2008.
Postado por Gerivaldo Neiva às 21:07 0 comentários
Motivações ideológicas da sentença
Desembargador Rui Portanova (foto do site do TJRS)

São muitas as motivações sentenciais.

Quer-se chamar a atenção neste livro para o fato de que os juízes são profundamente afetados por sua concepção de mundo: formação familiar, educação autoritária ou liberal, valores de sua classe social, aspirações e tendências ideológicas de sua profissão. [...]

Enfim, todo homem, e assim também o juiz, é levado a dar significado e alcance universal e até transcendente àquela ordem de valores imprimida em sua consciência individual. Depois, vê tais valores nas regras jurídicas. Contudo, estas não são postas só por si. É a motivação ideológica da sentença. Pelo menos três ideologias resistem ao tempo e influenciam mais ou menos o juiz: o capitalismo, o machismo e o racismo. [...]

A ideologia de que falamos não é má-fé, é um conjunto de representações, saberes, diretrizes ou pautas de condutas. Este complexo disperso, acumulado e pseudamente sistemático orienta, condiciona e governa atos, decisões e atividades. Não é uma realidade sensível e concreta, mas realidade imaginária e meramente possível, emanada de contexto socioeconômico. Está difundida nos preconceitos, costumes, religião, família, escola, tribunais, asilos, ciência, cultura, moral, regras gerais de conduta, filosofia, bom-senso, tradição [...] De regra, a ideologia está a serviço da classe no poder em determinado momento histórico, pois ao mesmo tempo em que mantém, legitima uma dada orientação política, econômica e social.

Logo, se a igualdade jurídica assegurada pela Constituição não corresponde à igualdade real da vida concreta do povo brasileiro, então a ordem jurídica não esta assegurando, na prática, a igualdade que apregoa. [...] Logo, a idéia de justiça é ideológica, pois traduz os interesses dos grupos detentores de poder e é utilizada para manutenção dessa relação de poder. [...] Nestas condições, é plantada a falsa idéia de ordem, segurança, desenvolvimento e progresso. Na verdade, o Direito é usado como instrumento da conservação. [...]

A visão tradicional, ordem legal, centrada na obrigatoriedade, generalidade e neutralidade, está, em verdade, a serviço de ideologias como: o capitalismo que privilegia economicamente uma minoria; o machismo, que relega a mulher a uma posição subalterna ao homem; o racismo, que promove a exclusão da grande maioria dos negros brasileiros [...] Logo, a lei nem sempre revela o Direito. Pelo contrário, muitas vezes consagra privilégios.

O juiz que não tem valores e diz que o seu julgamento é neutro, na verdade está assumindo os valores de conservação. O juiz sempre tem valores. Toda sentença é marcada por valores. O juiz tem que ter a sinceridade de reconhecer a impossibilidade de uma sentença neutra.

O juiz não é escravo da lei. Pelo contrário, o juiz deve ser livre, deve ser responsável. Enfim, dotado de inteligência e vontade, o juiz não pode ser escravo nem da lei. A sentença, provindo de sentir, tal como sentimento, deve expressar o que o juiz sente, diante desse sentimento definir a situação. Não há como afastar, assim, o subjetivismo do julgador no ato de julgar. [...]

Na busca de uma decisão justa, o juiz deve ter presente que o Direito é fenômeno social, intimamente relacionado a todos os outros aspectos da vida humana, não podendo, por isso mesmo, ficar estranho às contribuições das outras ciências. [...]

No Brasil, atualmente, o Direito existe e tem razão de ser quando se projeta na proteção dos mais fracos. Os mais fortes já tem seu lobbies, suas seguranças e seu poder econômico. O poder econômico já compra opiniões, induz decisões e até faz leis. Logo, não precisa do Poder Judiciário. Os pobres sim, estão precisando da justiça estatal para viver com um mínimo de dignidade. Para eles deve voltar-se preferencialmente o judiciário. [...]

É direito dos ricos de ficar ricos.

Contudo, é injusto que tal riqueza seja a causa da miséria e da morte de milhões de brasileiros. A transformação social é feita de muitas tarefas pequenas e grandes, grandiosas e humildes. (Paulo Freire, Medo e Ousadia).

O juiz está incumbido de uma dessas tarefas. Ele também é um agente global de transformação.

Assim agindo, as sentenças, por certo, não farão revolução, mas não a impedirão.

PORTANOVA, Rui. Motivações ideológicas da sentença. 4 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2000.

Postado por Gerivaldo Neiva às 19:10 2 comentários
Tombadilhos, periferias e favelas
Ainda em homenagem à consciência negra...
Navios negreiros não existem mais.
Em seu lugar, as periferias e favelas.
Chicote e açoites também não.
Em seu lugar, balas achadas e perdidas.


Era um sonho dantesco... o tombadilho

Que das luzernas vermelhas o brilho,

em sangue a se banhar.

Tinir de ferros... estalar de açoite...

Legiões de homens negros como a noite,

horrendos a dançar...


Negras mulheres, suspendendo às tetas

magras crianças, cujas bocas pretas

rega o sangue das mães:

Outras moças... mas nuas, espantadas,

no turbilhão de espectros arrastadas,

em ânsia e mágoa vãs.


E ri-se a orquestra, irônica, estridente...

E da roda fantástica a serpente

Faz doudas espirais...

Se o velho arqueja... se no chão resvala,

ouvem-se gritos... e o chicote estala.

E voam mais e mais...


Presa nos elos de uma só cadeia,

a multidão faminta cambaleia,

e chora e dança ali.


Castro Alves, O Navio Negreiro.

Postado por Gerivaldo Neiva às 08:09 0 comentários
sexta-feira, 20 de novembro de 2009
Negros se revoltam em Salvador
Uma lembrança em homenagem à consciência negra

Na noite do dia 24 para 25 de janeiro de 1835, um grupo de africanos escravos e libertos ocupou as ruas de Salvador, Bahia, e durante mais de três horas enfrentou soldados e civis armados. Os organizadores do levante eram malês, termo pelo qual eram conhecidos na Bahia da época os africanos muçulmanos.

Embora durasse pouco tempo, apenas algumas horas, foi o levante de escravos urbanos mais sério ocorrido nas Américas e teve efeitos duradouros para o conjunto do Brasil escravista. Centenas de insurgentes participaram, cerca de setenta morreram e mais de quinhentos, numa estimativa conservadora, foram depois punidos com penas de morte, prisão, açoites e deportação. Se uma rebelião das mesmas proporções acontecesse na virada para o século XXI em Salvador, com seus quase 3 milhões de habitantes, resultaria na punição de cerca de 24 mil pessoas. Isso dá uma idéia da dramática experiência vivida pelos africanos e outros habitantes da Bahia em 1835.

A rebelião teve repercussão nacional e internacional. No Rio de Janeiro uma notícia detalhada chegou ao público por meio de periódicos que publicaram o relatório do chefe de polícia da Bahia. Temendo que o exemplo baiano fosse seguido, as autoridades cariocas estreitaram a vigilância sobre os negros locais, sobretudo na Corte imperial. Além de disseminar o medo e provocar o aumento do controle escravo em todo o Brasil, os rebeldes também reavivaram os debates sobre a escravidão e o tráfico de escravos da África, agora vistos com olhos mais críticos. Em Londres, Nova York, Boston e provavelmente outras cidades da Europa e das Américas, a imprensa também publicou relatos do levante A África teve conhecimento do fato por intermédio dos numerosos libertos para ali deportados como suspeitos pelas autoridades baianas.

A seriedade com que as classes dirigentes encararam a rebelião se revela na extensa devassa que se fez. Esses processos resultaram numa formidável coleção de documentos sobre o movimento e os africanos que viviam na Bahia, fossem rebeldes ou não. Mais uma vez a história dos dominados vinha à tona pela pena dos escrivães de polícia. A qualidade e a quantidade desses documentos tornaram-nos um testemunho extraordinário sobre a escravidão urbana e a cultura de origem africana nas Américas. Temos aí, por exemplo, mais de duzentos in­terrogatórios, nos quais, apesar do óbvio constrangimento da situação, os africanos falaram, além da rebelião, de aspectos de sua vida cultural, social, econômica, religiosa, doméstica e até amorosa.

REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos Malês em 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

Fonte: http://gerivaldoneiva.blogspot.com/ (Juiz de Direito da Comarca de Conceição do Coité - Bahia)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.