Paul Tillich, Teologia Sistemática, p 346-349
A qualidade de todos os atos em que o ser humano se afirma existencialmente apresenta dois lados: um em que o ser humano separa seu centro do centro da vida divina (descrença) e o outro em que ele se converte em centro de si mesmo e de seu mundo (hybris). Surge naturalmente a pergunta por que o ser humano se sente tentado a se transformar em centro de si mesmo. A resposta é que isso o coloca na posição de arrastar a totalidade de seu mundo para dentro dele mesmo. Eleva-o acima de sua particularidade. Essa é a tentação do ser humano em sua posição entre a finitude e a infinitude. Cada indivíduo, por estar separado da totalidade, deseja uma reunião com o todo. Sua "pobreza" o impulsiona a buscar a abundância. Essa é a raiz do amor em todas as formas. A possibilidade de alcançar abundância ilimitada é a tentação do ser humano. que é um eu e possui um mundo. O nome clássico para esse desejo é concupiscentia, "concupiscência" - o desejo ilimitado de atrair a realidade toda para o próprio eu. Este desejo refere-se a todos os aspectos da relação que o ser humano estabelece consigo mesmo e com seu mundo. Refere-se tanto à fome física como ao sexo, tanto ao conhecimento como ao poder, tanto à riqueza material como aos valores espirituais. Mas esse sentido todo-abrangente da concupiscência frequentemente foi reduzido a um sentido muito especial, a saber, ao desejo do prazer sexual. Inclusive teólogos como Agostinho e Lutero, que consideravam o pecado espiritual como básico, tenderam a identificar concupiscência com desejo sexual. É compreensível que Agostinho sustentasse essa concepção, pois nunca superou a depreciação helenística e, sobretudo, neoplatônica do sexo. Mas é inconscistente e difícil de compreender que resquícios dessa tradição perdurem na teologia e na ética dos Reformadores. Eles nem sempre rejeitam claramente a doutrina não-protestante de que o pecado "hereditário" está enraizado no prazer sexual do ato de geração. Se a palavra "concupiscência" é usada nesse sentido limitado, ela certamente é incapaz de descrever o estado de alienação geral, e seria preferível que a abandonássemos completamente, pois a ambiguidade dessa palavra é uma das muitas expressões que causam a ambiguidade da atitude cristã frente ao sexo. A igreja nunca foi capaz de abordar adequadamente este problema ético e religioso central. Assim, pois, explicitar agora o pleno significado de "concupiscência" pode contribuir eficazmente para resolver esta situação.
A doutrina da concupiscência - considerando-se o termo em seu sentido todo-abrangente - pode ser confirmada por muito material e percepções profundas da literatura existencialista, da arte, da filosofia e da psicologia. Bastará mencionar primeiro alguns exemplos, alguns dos quais expressam o sentido de concupiscência em figuras simbólicas, outros em forma de análise. Quando Kierkegaard descreve a figura do imperador Nero, ele recorre a um tema do cristianismo primitivo para elaborar uma psicologia da concupiscência. Nero corporifica as implicações demoníacas do poder ilimitado; ele representa o indivíduo que conseguiu vincular à sua pessoa o universo mediante o exercício de um poder que utiliza em proveito próprio tudo aquilo que lhe aprouver. Kierkegaard descreve o completo vazio interior desta situação que conduz à determinação de causar a morte a tudo o que encontra, inclusive a si próprio. De forma similar, ele interpreta a figura de Don Juan de Mozart, criando a figura de Johannes, o sedutor. Aqui, com a mesma penetração psicológica, mostra-nos o vazio e o desespero do impulso sexual ilimitado que impede uma união de amor criativa com a parceira sexual. Neste caso, como no símbolo de Nero, é visível o caráter autodestrutivo da concupiscência. Poderíamos acrescentar como terceiro exemplo a figura do Fausto de Goethe, cujo impulso ilimitado se dirige ao conhecimento, ao qual se subordinam tanto o poder quanto o sexo. Para "saber tudo", Fausto aceita o pacto com o demônio. O que produz a tentação demoníaca não é o conhecimento como tal, mas o "tudo". O conhecimento como tal, assim como o poder e o sexo como tais, não constitui um objeto de concupiscência, mas o desejo de vincular cognitivamente o universo em si mesmo e à própria particularidade finita.
É o caráter ilimitado do desejo de conhecimento, de sexo e de poder que torna estes desejos sintomas de concupiscência. Isso foi elaborado em duas descrições conceituais de concupiscência: a "libido" de Freud e a "vontade de poder" de Nietzsche. Ambos os conceitos contribuíram imensamente para a redescoberta da concepção cristã da condição humana. Mas ambos ignoram o contraste entre o ser essencial e o ser existencial do ser humano e interpretam o ser humano exclusivamente em termos de concupiscência existencial, omitindo qualquer referência ao eros essencial do ser humano, eros que se vincula a um conteúdo definido.
Segundo Freud, a libido é o desejo ilimitado do ser humano de se liberar de suas tensões biológicas, especialmente das sexuais, e obter prazer dessa liberação de tensões. Freud mostrou que elementos libidinosos estão presentes nas experiências e atividades espirituais mais elevadas do ser humano, e, com isso, redescobriu percepções subjacentes às tradições monásticas de exame rigoroso de consciência, tais como se praticavam no cristianismo primitivo e medieval. A ênfase de Freud nesses elementos, que não podem ser separados dos instintos sexuais do ser humano, está plenamente justificada e concorda com o realismo da interpretação cristã da condição humana. Não deveríamos rejeitar o pensamento freudiano em nome de falsos tabus sexuais que são apenas pseudocristãos. Freud, em seu realismo honesto, é mais cristão do que esses tabus. Desde um ângulo específico, descreve com toda a exatidão o que significa concupiscência. Isso é especialmente óbvio na forma como Freud descreve as conseqüências da concupiscência e de seu impulso nunca satisfeito. Quando ele fala do "instinto para a morte" (Todestrieb) que traduziríamos mais adequadamente por "pulsão para a morte"), ele descreve o desejo de fugir da dor suscitada por uma libido nunca satisfeita. O ser humano, como todo ser superior, deseja retornar ao nível inferior de vida do qual proveio. A dor provocada pelo nível superior o induz a refugiar-se no nível inferior. É a libido nunca satisfeita no ser humano, esteja ou não reprimida, que produz nele o desejo de desfazer-se de si mesmo como ser humano. Nestas observações referentes à "insatistação" do ser humano com sua criatividade, Freud penetrou mais profundamente na condição humana do que muitos de seus seguidores e críticos. Até este ponto uma interpretação teológica da alienação humana fará bem em seguir as análises de Freud.
Mas a teologia não pode aceitar a doutrina freudiana de libido como uma reinterpretação suficiente do conceito de concupiscência. Freud não percebeu que sua descrição da natureza humana só é adequada ao ser humano em sua condição existencial, mas não em sua natureza essencial. O caráter infinito da libido é uma das marcas da alienação do ser humano que contradiz sua bondade essencial ou criada. Na relação essencial do ser humano consigo mesmo e com seu mundo, a libido não é concupiscência. Não é o desejo infinito de vincular o universo à sua existência particular, mas um elemento do amor unido a suas outras qualidades - eros, philia e agape. O amor não exclui o desejo; ele contém em si a libido como um dos seus elementos. Mas a libido que está unida ao amor não é infinita. Como todo amor, ela tende para um sujeito definido com quem deseja unir o portador do amor. O amor quer o outro ser e o quer na forma de libido, eros, philia ou agape. A concupiscência, ou libido distorcida, quer o próprio prazer através do outro ser, mas não quer o outro ser. Esse é o contraste entre libido como amor e libido como concupiscência. Freud não estabelece essa distinção por causa de sua atitude puritana em relação ao sexo. O ser humano só pode chegar a ser criativo mediante a repressão e a sublimação da libido. Na concepção de Freud, não existe eros criativo que inclua o sexo. Comparado com homens como Lutero, Freud é um asceta nesta sua pressuposição básica acerca da natureza do ser humano. O protestantismo clássico nega esses pressupostos no que tange ao ser humano em sua natureza essencial ou criada, pois nesta é real o desejo de se unir com a pessoa que é o objeto do amor pelo bem dela. E esse desejo não é infinito, mas definido. Não é concupiscência, mas amor.
A análise do conceito freudiano de libido produziu importantes percepções da natureza da concupiscência e de seu oposto. Outro conceito, igualmente importante para a teologia cristã, é a "vonta de poder" de Nietzsche. Uma das formas pelas quais ele influenciou o pensamento contemporâneo é através da psicologia do profundo que interpretou a libido humana mais em termos de poder do que em termos de sexo. Mas existem outras formas, mais diretas, especialmente na política e na teoria social, pelas quais o conceito de Nietzsche influenciou o pensamento contemporâneo. "Vontade de poder" é, em parte, um conceito e, em parte, um símbolo. Portanto, não se deve entendê-lo literalmente. Na expressão "vontade de poder", vontade não significa um ato psicológico sobre o ser humano. A vontade consciente de obter poder sobre os seres humanos está enraizada no desejo inconsciente de afirmar o próprio poder de ser. "Vontade de poder" é um símbolo ontológico para a auto-afirmação natural do ser humano na medida em que o ser humano tem o poder de ser. Mas não se restringe ao ser humano, pois é uma qualidade de tudo o que existe. Pertence à bondade criada e é um símbolo poderoso da auto-realização dinâmica que caracteriza a vida.
Mas, como a "libido" de Freud, também a "vontade de poder" de Nietzsche acaba sendo confusa se não estabelecermos com clareza a diferença entre a auto-afirmação essencial do ser humano e seu desejo existencial de ilimitado poder de ser. Nietzsche segue a doutrina de Schopenhauer, que considera a vontade como força motriz ilimitada em todo ser vivo, produzindo no ser humano o desejo de alcançar a quietude mediante a autonegação da vontade. Nesse sentido, é óbvia a analogia entre Schopenhauer e Freud. Para ambos, é o desejo infinito e nunca satisfeito que conduz o ser humano à autonegação. Nietzsche tenta superar essa tendência proclamando enfaticamente uma coragem que assume as negatividades do ser. Nesse ponto, é influenciado pelo estoicismo e pelo protestantismo. Mas, em contraste com ambos, ele não nos mostra as normas e princípios pelos quais devemos julgar a vontade de poder. Ela permanece ilimitada e apresenta traços demoníaco-destrutivos. Trata-se, pois, de um novo conceito e de um novo símbolo da concupiscência.
Nem a libido nem a vontade de poder são em sí características da concupiscência. Ambas se tornam expressões da concupiscência e da alienação quando não estão unidas ao amor e, portanto, quando carecem de todo objeto definido.
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