terça-feira, 9 de março de 2010

A teoria da cegueira deliberada e o direito penal brasileiro

Robson A. Galvão da Silva
Especialista em Direito Penal e criminologia pela UFPR/ICPC,
especialista em Direito Penal econômico pela Universidad Castilha-La Mancha (ES),
mestre em Direito econômico pela PUC-PR.
Advogado criminal


LAUFER, Christian. SILVA, Robson A. Galvão da. A teoria da cegueira deliberada e o direito penal brasileiro. In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 17, n. 204, p. 10-11, nov., 2009.

A jurisprudência dos EUA, ao longo do último século(1), construiu o raciocínio segundo o qual atua dolosamente o agente que preenche o tipo objetivo ignorando algumas peculiaridades do caso concreto por ter se colocado voluntariamente numa posição de alienação diante de situações suspeitas, procurando não se aprofundar no conhecimento das circunstâncias objetivas. Trata-se da teoria da cegueira deliberada.

Fora do sistema da Common Law, o Tribunal Constitucional da Espanha vem acatando esse entendimento há quase uma década(2), no sentido de dizer que atua dolosamente quem pratica o núcleo do tipo, diante de uma situação suspeita, colocando-se em condição de ignorância, sem se importar em conhecer mais a fundo as circunstâncias de fato.

No Brasil, Moro, em matéria de lavagem de capitais, defende serem subjetivamente típicas condutas que tenham sido praticadas nessa situação de “autocolocação em estado de desconhecimento” (3), quando o agente procura não conhecer detalhadamente as circunstâncias de fato de uma situação suspeita.

Sobre o tema houve, recentemente, na jurisprudência brasileira, um importante precedente. Trata-se da sentença que julgou os supostos autores e partícipes do furto de mais de R$ 160 milhões dos cofres do Banco Central em Fortaleza/CE. Dentre os acusados, estavam dois vendedores de carros que realizaram negócios com os supostos ladrões, recebendo altas somas de dinheiro vivo em troca das mercadorias. Ao considerar que o furto foi praticado por uma organização criminosa (enquadrando-se na hipótese do artigo 1º, inciso VII, da Lei n. 9.613/98), o juiz singular, aplicando a teoria da cegueira deliberada, condenou os dois comerciantes por lavagem de dinheiro, asseverando que agiram com indiferença à estranheza da negociação realizada com dinheiro em espécie, assumindo o risco de vender automóveis em troca de dinheiro sujo. Em segunda instância, o TRF da 5ª Região afirmou expressamente que “a doutrina da cegueira deliberada é aplicável a todos os delitos que admitam o dolo even­tual”. Contudo, como a imputação dizia respeito ao artigo 1º, § 2º, inciso I, da Lei de Lavagem de Dinheiro, que só admitiria o dolo direto, reformou-se a sentença de primeira instância(4).

O problema da cegueira deliberada é, em verdade, um problema de dolo eventual: cabe perquirir se, segundo o ordenamento pátrio, atua com dolo aquele que, diante de situações suspeitas, age de modo a possivelmente praticar o tipo objetivo sem se importar em conhecer mais a fundo as circunstâncias de fato.

Desde já, cabe assentar uma premissa: quando se trata de ignorância deliberada, fala-se sempre em “certo grau de suspeita a respeito das circunstâncias de fato”. O sujeito tem alguma noção daquilo que o rodeia, chegando a suspeitar da existência de alguma ilegalidade. A ignorância intencional se dá a respeito apenas de eventuais conhecimentos adicionais que poderiam vir a ser conhecidos caso o agente empreendesse uma investigação, ainda que sucinta.

Sabe-se que o dolo eventual é conceitua­do legalmente a partir da assunção do risco de produzir o resultado da ação típica (artigo 18, inciso I, CP). Mas é claro que essa modalidade dolosa também exige o elemento cognitivo. Em primeiro lugar, porque é impossível, logicamente, assumir o risco de produzir o resultado daquilo que não se conhece, ao menos minimamente. Em segundo, porque o próprio artigo 20 do CP prevê que o erro sobre elemento constitutivo do tipo exclui o dolo.

Na doutrina brasileira, ensinam Zaffaroni e Pierangeli(5)que não se exige, para o dolo eventual, o “completo conhecimento dos elementos do tipo objetivo”. Para eles, há dolo eventual mesmo quando o autor duvida de alguns desses elementos e, mesmo assim, age de modo a assumir o risco de produzir o resultado normal do tipo, conformando-se com ele.

Esse é o mesmo entendimento de Roxin(6), que afirma “agir com dolo eventual” aquele que, suspeitando da presença dos elementos do tipo objetivo – mas sem a certeza absoluta – age de modo a possivelmente produzir o resultado típico.

De qualquer forma, ainda que se admita o dolo eventual em casos de dúvida acerca de elementos do tipo objetivo, é certo que se exige o efetivo conhecimento acerca de um mínimo de circunstâncias de fato: ou se tem um certo conhecimento de elementos do tipo objetivo, quando se poderá falar em dolo (direto ou eventual), ou não se tem, e aí só se poderá falar em culpa.

Isso porque o “conhecimento potencial dos elementos do tipo objetivo” não configura o dolo eventual, diferentemente do que ocorre com o “conhecimento potencial da antijuridicidade” do fato, que enseja a culpabilidade(7). O mínimo de representação das circunstâncias do tipo objetivo deverá estar efetivamente presente no momento da conduta, não se aceitando que o agente pudesse “vir a ter esse conhecimento mínimo”exigido caso se esforçasse para tanto.

Pode-se concluir, com apoio no entendimento de Santos(8), que o estado de ignorância acerca do mínimo conhecimento exigido afasta o dolo. O desconhecimento, ainda que advenha de uma autocolocação em estado de alienação, está em relação de exclusão lógica com qualquer espécie de dolo.

Neste ponto, todavia, cabe indagar: tratando-se de situações suspeitas, qual é o grau de conhecimento que permite diferenciar o dolo eventual da culpa consciente? A resposta a essa pergunta, segundo se entende, dependerá das circunstâncias de cada caso concreto, quando então será possível avaliar qual o grau de ciência das circunstâncias de fato, no momento em que se praticou a conduta descrita no tipo objetivo.

Em verdade, o problema não é o fato de o agente não se aprofundar no conhecimento, até porque a lei, em regra, não obriga que se efetue tal investigação. A resposta estará no grau de conhecimento que o autor efetivamente possui ao cometer o tipo objetivo: se há sérios in­dícios (representados no intelecto), poderá haver dolo eventual, independentemente de o agente ir além na investigação. Afinal, nessa hipótese o autor terá o “conhecimento necessário das pertinentes circunstâncias do fato”, suficiente para a caracterização do dolo eventual. Porém, na ausência desses sérios indícios, não há dolo, pelo simples fato de que o conhecimento exigível para a configuração de qualquer espécie dolosa deve ser sempre atual, e não potencial.

Ao se tratar da “cegueira deliberada”, tem havido uma inversão na ordem de importância do que efetivamente deve ser analisado. Prioriza-se aquilo que o sujeito não sabe (os conhecimentos adicionais potencialmente alcançáveis), ao invés de estudar-se aquilo que está devidamente representado pelo autor ao decidir prosseguir agindo. É certo que sempre será possível ao agente conhecer mais a fundo as circunstâncias do caso concreto, motivo pelo qual não é correto enaltecer aquilo que o sujeito poderia vir a conhecer.

Em conclusão, em sistemas jurídico-penais como o brasileiro, acredita-se ser de pouca valia a teoria da cegueira deliberada. Tudo o que integra essa cegueira, ou seja, todos os elementos de fato que não são representados pelo agente, por intencionalidade ou não, não integram o elemento intelectual do dolo e, portanto, não podem acarretar nenhuma condenação por crime doloso.

2 comentários:

  1. Penso que a Teoria da Cegueira Deliberada deva ser aplicada aos casos em que esta possa ser identificada. O caso citado é exemplar.

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  2. Obrigada! Comentários como o seu é um estimulo para continuarmos por aqui. Beijos.

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