Os homens ainda traem mais que as mulheres, mas as estatísticas estão caminhando para uma situação igualitária de maneira rápida. Além disso, o número de pessoas que traem também cresce de modo contínuo e veloz. Não tardará o dia em que todos nós, ao menos uma vez, não só será corno (ou corna), mas saberá disso de modo bem claro. E isso não em situações de namoro ou casamentos pouco sugestivos, mas mesmo em casamentos promissores ou efetivamente duradouros.
Não é o caso aqui de falar de motivos para o adultério. A literatura diz melhor sobre isso que a filosofia. O que me interessa aqui é a própria situação de adultério, ou seja, o que a caracteriza se a olhamos não pelo que seria o vulgar, mas pela descrição tentada a partir da filosofia.
A traição é o rompimento de uma confiança que se imagina ser mútua. Na situação pré-moderna a traição entre amigos era mais condenada que a traição entre cônjuges. A modernidade – e todo o seu fundamento profundamente romântico – inaugurou a equiparação entre essas formas de traição e, de certo modo, até mesmo a ampliação da condenação no segundo caso. A adoção da união “por amor”, e não por qualquer outro motivo, fabricou essa nova situação.
ArendtO casamento “por amor” implica no consenso inicial pactuado na intimidade e, portanto, às relações sexuais e institucionais da união soma-se a própria cláusula da amizade. De um modo geral, nos meios caracteristicamente urbanos, a união atual que é a procurada é a que funde dois requisitos: satisfatórias relações sexuais e amizade. Sendo assim, toda a carga emotiva da amizade entra, agora, em um espaço que, em princípio, seria só do sexo e de resquícios de tradições das obrigações matrimoniais do passado. Na lírica de Rita Lee, amor sem sexo é amizade, no pentagrama da vida urbana contemporânea, amor para o casamento é exatamente, então, a amizade com sexo. Desse modo, a traição ganha força dupla – ela rompe não laços que podem ser formais, mas elos da confiança mútua – a amizade – que fixava o horizonte que se prometia comum. Por isso, nos tempos contemporâneos, justamente em uma época que os mais distraídos pensam que “uma traição amorosa não conta mais nada”, ela conta muito. Quem trai não ofende a honra do outro e, sim, se tudo é descoberto ou contado, magoa os sentimentos do outro e fere seu orgulho próprio de modo inaudito. Caso uma constelação celeste desfavorável se insinue, há então situações de confronto espetaculares e trágicas.
HeideggerO que se passa na traição que não temos coragem de contar, talvez nem para nós mesmos, diz respeito a uma completa complexidade de sentimentos. Muitos não se dão conta dos detalhes dos sentimentos ou porque que se observam pouco ou, inversamente, porque se observam muito e ficam chocados com suas reações psicológicas.
A primeira coisa que o cônjuge traído imagina diz respeito ao momento de intimidade que o parceiro ou a parceira viveu com o terceiro elemento. Tudo se passa como se o cônjuge traído fosse levado para a cama de um terceiro elemento a contragosto. O traído sente-se invadido, devassado, exposto. Seu sentimento é o de que é ele que foi levado ao sexo – e de modo desagradável, pois com o estranho. Assim, não é de se achar esquisito que a mesma fantasia do “sexo com o estranho”, que deixa muitos homens e mulheres excitados, reapareça no momento exato em que os casais brigam por conta de traições Assim, não raro, em meio a fantásticas discussões, repentinamente eles se reconciliam, fazem sexo e, após isso, se não voltam a brigar logo em seguida, se engalfinham em bate-bocas e desforras no dia seguinte, ou em maquinações piores. O momento do sexo, no dia anterior, não foi uma reconciliação em toda a extensão da palavra, mas apenas uma situação opaca, criada pela fantasia latente do sexo com o estranho. O estranho, nesse caso, pode funcionar como um fantasma bem específico na imaginação dos dois envolvidos, inclusive cumprindo um papel homossexual, num sentido amplo da palavra.
Casais em meio a uma briga podem fazer sexo, sendo que o traído, nesta hora, imagina o parceiro fazendo sexo com o terceiro elemento – isso parece algo não homossexual, mas, em certo sentido, há sim um componente homoerótico aí envolvido. Há aí a competição, a luta imaginária entre rivais. É claro que as relações de sadismo e masoquismo emergem neste contexto, quase que invariavelmente. Sodomizo minha mulher porque quero, agora que sei que ela pode ter feito sexo com outro, puni-la e/ou mostrar para ela que sou mais homem que o outro. Sodomizo minha mulher porque sempre quis agir assim, mas nunca a vi como mulher sexualizada – objetificada – o suficiente para tal. Então, como ela se mostra ou se fez desejosa de outro, eu avanço o sinal que eu mesmo havia colocado (eis aí o meu erro) de não tratá-la de modo não objetificado. Essa sodomização pode ser simplesmente o coito anal ou mesmo o coito vaginal com alguns tapas etc., nada além. Mas, ao mesmo tempo em que meu sadismo se amplia, mantenho meu sofrimento latente na medida em que o outro que esteve no meu lugar, também esteve ali presente, na minha fantasia quase que impossível de deter. Esse outro fez da minha mulher o que quis, com o consentimento dela. Sofro com isso e o ato sexual perdura meu sofrimento, necessário agora para o meu prazer real – o masoquismo – e, enfim, também para a minha mulher. A mulher, nesta hora, percebe que despertou o marido para algo que ela queria e sabia que queria, ou que, talvez, nem soubesse tanto que queria. Mutatis mutandis tudo isso vale inversamente, para a mulher.
Alguns casais seguem em frente após isso. Há quem diga: foram cicatrizadas as feridas. Não! Ou ao menos não no sentido de que os prazeres envolvidos no despertar do sadismo e do masoquismo desapareceram. Caso as feridas tenham sido cicatrizadas, as chances de ocorrer novamente são grandes. Pois a ferida misturada ao sexo pode ser um ingrediente necessário para aquele casal. Há mulheres que percebem isso e, amando de fato seus maridos, sugerem que os traíram para que a fantasia do jogo sado-masoquista possa estar presente, tênue ou não, no decorrer do casamento. Esquecem-se elas que talvez nem precisassem de tal coisa, pois seus homens, na calada da noite no sexo com elas, sempre estiveram fantasiando, imaginando situações em que elas os corneavam. Isso é muito mais comum do que podemos obter por mensurações estatísticas feitas por psicólogos amadores.
Os homens tendem menos a criar situações, reais ou fictícias, de que estão traindo suas mulheres. Uma boa parte dos homens acha que é melhor “andar na linha”, visivelmente ou realmente, pois podem machucar suas mulheres (ou perder o controle delas por falta de legitimidade moral nas relações de poder que montam um casamento). Há, ainda, uma grande culpa do homem em relação à mulher, pelo fato dele exercer, ainda que não individualmente, uma supremacia social. Mas, logo agirão assim também, ou seja, podendo insinuar uma pequena traição, pois em uma sociedade como a contemporânea os papéis masculinos e femininos, caracterizados antes por “psicologias”, vão desaparecendo em função de um comportamento semelhante e unificado.
Muitos que observam casais que viveram situações de traição imaginam que os divórcios não saíram porque os casais foram hipócritas e, se odiando eternamente, viveram juntos por “pressões sociais”. Às vezes essa verdade que não se conta é, no fundo, apenas uma mentira. Ou seja, a pressão social contou menos do que imaginamos. O grande filósofo alemão, Heidegger, que inclusive chegou por um momento a ter simpatias com o nazismo, viveu uma paixão com uma aluna bem mais jovem, a judia Hanna Arendt que, depois, se tornou também uma filósofa famosa. Heidegger nunca se divorciou. Depois, já sem os encontros com Arendt, ele manteve outros casos extraconjugais com alunas, cada vez mais distantes de sua idade. Sua mulher sempre esteve ali, ciente, consciente, vigilante e compreensiva. Sim, compreensiva, mas dona da situação. Arendt a odiou a vida toda. Todavia, sabe-se que a mulher de Heidegger confessou a ele que amou o médico do casal. As cartas mostram que Heidegger soube disso, inclusive soube (ou sempre soube) que um de seus filhos era, em verdade, filho do médico. Heidegger nunca deixou de amar o filho e jamais se separou da mulher. Eles tinham todo um conjunto de segredos de polichinelo para compartilhar. Olhando de fora, pode-se dizer: o grande filósofo nunca foi nada além de um babaca. Não teve coragem de deixar a família para viver o grande amor com a deliciosa e inteligente judia. Mas, será esta a verdade? Ou, a quatro paredes, este casal, o filósofo e sua esposa, não tiveram uma vida sexual das melhores, um amor aparentemente burguês e, no fundo, além do amor burguês? Caso tenha sido isto, talvez o mecanismo sado-masoquista, a que aludi acima, tenha estado presente na cama deles, segurando eternamente o casamento. Nunca saberemos a verdade. Por isso mesmo, a história é boa. E dá o que pensar.
A situação do adultério é evitável. Muitos que se sabem poligâmicos podem optar pela monogamia. Os que não se tomam como poligâmicos têm mais dificuldade em serem monogâmicos por opção. Mas, como já disse, não é esta a questão aqui. A questão aqui era só a de descrever a situação de adultério. Ou seja, o que queria era poder dizer: o que ocorre no adultério é isso – e foi o que eu disse. Ou quase, porque o que falei está longe de ser um padrão. Vamos continuar acreditando que não nos comportamos de modo padronizado e, assim, cada um que vier a ler este meu texto poderá, ainda, conversar comigo e dizer “Ah, Paulo, o que falou, não tem nada a ver – ao menos comigo”. Ou seja, poderá ainda conversar comigo.
Paulo Ghiraldelli Jr é filósofo e escritor e está lançando entre dezembro de 2009 e janeiro de 2010 dois áudio books, “O que é marxismo?” e “Nietzsche apaixonado” (Universidade Falada) e um livro A aventura da filosofia (Manole)
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