domingo, 31 de outubro de 2010

Enfim Lula Privatizou

Para atrair investimentos em infra-estrutura, o governo lança um programa de concessões de estradas, ferrovias, usinas e portos como havia muitos anos não era visto. A onda vai continuar?
ISABEL CLEMENTE, ANDRÉA LEAL E MARIA LAURA NEVES

DISPUTA
Salão de pregão da Bovespa, no leilão de rodovias federais. Os lances dos espanhóis deixaram a concorrência espantada
No final da tarde da terça-feira 9, o Partido dos Trabalhadores trazia a seguinte manchete em seu site na internet: “CUT e PT se mobilizam contra nova onda de privatização tucana em SP”. O detalhe é que, enquanto a “onda” tucana do governo de São Paulo ainda está no plano das intenções, quem está empenhado num programa de abertura do setor público à iniciativa privada como havia muitos anos não era visto no Brasil é o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do PT. A crítica estampada no site do PT apareceu enquanto o Palácio do Planalto ainda comemorava o sucesso do leilão que escancarou o modo petista de privatizar. Em torno das estradas federais, houve uma movimentação de capitais privados como não se via desde a privatização do sistema Telebrás, há dez anos.

Realizado na Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa), palco de algumas privatizações simbólicas no governo Fernando Henrique, o leilão do governo Lula concedeu à administração privada 2.600 quilômetros de rodovias federais. A União deu aos vencedores o direito de explorar, por 25 anos, pedágios em algumas das estradas mais importantes do país, como a Régis Bittencourt, que liga São Paulo a Cutiriba, e a Fernão Dias, entre São Paulo e Belo Horizonte. Em troca, os vencedores do leilão se comprometem a investir R$ 19 bilhões em manutenção, melhoria e, em alguns casos, duplicação das estradas. Lula privatizou mais quilômetros de estrada que o governo Fernando Henrique em oito anos. No governo FHC foram concedidos à iniciativa privada 854 quilômetros. Para a Associação Brasileira de Infra-Estrutura, o potencial é ainda maior: 15 mil quilômetros poderiam ser alvo de concessões ou parcerias público-privadas (PPPs). “Já perdemos tempo demais. Esperamos que os outros leilões sejam mais rápidos”, diz Paulo Godoy, presidente da Associação Brasileira de Infra-Estrutura (Abdib). O resultado do leilão deixou o governo tão empolgado que já foi anunciada a intenção de privatizar mais uma estrada na Bahia, em dezembro.

As privatizações do governo Lula começaram na primeira semana de outubro, quando a Vale do Rio Doce pagou R$ 1,4 bilhão pelo direito de explorar os 720 quilômetros da Ferrovia Norte–Sul, entre Açailândia, Maranhão, e Tocantins, Pará. Para os próximos meses, estão previstas ainda licitações para a exploração da terceira geração de celulares, para a construção das usinas hidrelétricas do Rio Madeira, de novas linhas de transmissão e para a modernização dos portos (leia o quadro à pág. 40). Pelas contas do governo, todos esses negócios têm potencial para gerar mais de R$ 30 bilhões em investimentos nos próximos anos. “Tudo isso vai contribuir para a queda do custo Brasil e para a melhoria da qualidade de vida das pessoas em geral”, diz Godoy, da Abdib.

O Brasil está enroscado há anos nos mesmos problemas de infra-estrutura. Estradas ruins, portos congestionados e lentos, ferrovias deficientes e risco de falta de energia. De acordo com um estudo divulgado em setembro pelo Centro de Estudos em Logística da Universidade Federal do Rio de Janeiro, as deficiências de infra-estrutura custam cerca de US$ 40 bilhões ao ano para as empresas brasileiras, portanto para a economia como um todo. “Custos mais altos representam perdas”, diz o professor Paulo Fleury, da UFRJ. “Se você gasta mais, está sendo menos competitivo.”

De todos os problemas que o país enfrenta na área de infra-estrutura, o abandono das estradas é um dos mais dramáticos. Esburacada, a malha rodoviária prejudica a economia, porque encarece os fretes e contribui para transformar o trânsito brasileiro num dos mais perigosos no mundo. Até a semana passada, a ação mais ampla do governo Lula em relação às estradas federais tinha sido a Operação Tapa-Buraco. Realizada em 2005, ela custou R$ 410 milhões e deixou um saldo ruim. Das 101 estradas reformadas, 48 apresentaram algum tipo de irregularidade segundo o Tribunal de Contas da União (TCU).

Agora, o presidente Lula – superando preconceitos históricos de seu partido e de seu próprio discurso na campanha, quando usou o tema privatização para hostilizar o adversário Geraldo Alckmin – governa guiado pelo mesmo princípio que tanto criticou nos tucanos. O princípio é o da desestatização, que pressupõe transferir do Estado para a iniciativa privada serviços e obras onde ele não consegue investir. É a única forma de um Estado endividado e com orçamento apertado garantir investimentos para reerguer a infra-estrutura brasileira.


CONTRADIÇÃO
Site oficial do PT, instantes depois do leilão da Bovespa. Enquanto o Planalto comemorava o resultado da concessão de rodovias, o partido criticava a privatização no Estado de São Paulo
Antes desconfiado de qualquer forma de privatização, seu governo acabou se rendendo às evidências de que investimentos terão de vir do setor privado. E a palavra usada para isso, quer os petistas gostem ou não, é privatização. “O governo Lula tem um problema característico dos governos de esquerda: uma preocupação muito grande em não dar altos retornos aos empresários”, diz Christopher Garman, diretor da Eurásia, uma consultoria de negócios dos Estados Unidos. “Mas o leilão das rodovias mostra que houve um amadurecimento.” Para a ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, “essa conversa é muito simplista” (leia a entrevista à pág. 42). Dilma faz questão de diferenciar: concessão não é privatização. Mas, na prática, ambas reduzem a presença do Estado na economia. “Cabe ao setor privado papel de protagonista num país como o nosso”, diz Dilma. “O Estado não pode tudo, mas tem certo tipo de patrimônio que não se vende nunca.”

O leilão da terça-feira atraiu 30 empresas. Ganharam as que aceitaram cobrar as menores tarifas de pedágio. O destaque foi a presença do grupo espanhol OHL. Concessionário de rodovias na Espanha, no México, no Chile, na Argentina e também no Brasil, ele levou cinco das sete concessões oferecidas. Os espanhóis ganharam comprometendo-se a cobrar pedágios modestos, se comparados aos da Via Dutra (uma das primeiras rodovias federais privatizadas). Nos 400 quilômetros que separam Rio e São Paulo há sete pedágios. Neles, os veículos de passeio pagam três tarifas: R$ 3,60, R$ 3,80 e R$ 7,80. Pelos 562 quilômetros da Fernão Dias, os executivos do OHL ofereceram R$ 0,99 por pedágio.

No leilão, o primeiro lote era o trecho da Régis, disputado por 13 grupos empresariais. O OHL saiu na frente com um lance de R$ 1,364. O silêncio no salão do pregão da Bovespa foi quebrado por um coro de espanto. O preço oferecido era quase metade do teto fixado pelo edital. No segundo lote, nova surpresa. Estava em jogo a concessão da Fernão Dias, a mais cobiçada do pacote. O OHL venceu novamente.

Os concorrentes não conseguiram se conter. Um elegante senhor de cabelos grisalhos e terno escuro soltou um palavrão. Outro, irritado, comentou: “O que estão querendo fazer?”. Debochado, um homem de rosto anguloso e óculos de aros grossos disse que “já dá para ir e voltar de São Paulo a Curitiba e ainda sobra dinheiro para um cappuccino”. Daí em diante, o OHL levou mais três rodovias. A empresa BR Vias, da família Constantino, dona da Gol Linhas Aéreas, ficou com a Rodovia BR-153 (que liga Minas Gerais ao Paraná). Outra empresa espanhola, a Acciona, arrematou um trecho de 200,4 quilômetros da BR-393 (que vai de Minas ao Rio).

O representante de uma corretora presente ao leilão disse a ÉPOCA que o mercado desconfia da capacidade do OHL de cumprir seus compromissos. A CCR, uma das principais concessionárias de rodovias do país, distribuiu uma nota depois do leilão. Afirmou que, para ela, seria inviável oferecer tarifas em patamares iguais aos do OHL: “Não poderíamos assumir com a sociedade brasileira o compromisso de melhoria, expansão e duplicação da malha rodoviária nas rodovias concedidas, por acreditar que a expansão não seria sustentável”. De acordo com José Carlos de Oliveira, presidente do OHL no Brasil, a tarifa é “factível e garante a remuneração dos acionistas”. “Ela foi elaborada com base nos estudos de tráfego, na solidez do país, na redução da taxa de juros. É uma estratégia que está dentro do nosso objetivo de crescimento no país”, diz.

O preço do pedágio provoca tanta reação porque ele é uma novidade deste governo. Oferecer a menor tarifa foi o único critério usado para definir os vencedores dos leilões. Nas concessões anteriores, tanto no governo Fernando Henrique Cardoso quanto no modelo adotado pelos tucanos Mário Covas e Geraldo Alckmin, em São Paulo, as empresas interessadas também tinham de pagar anualmente um valor pelo “aluguel” das estradas, conhecido como outorga. Segundo a Associação Nacional de Transportes de Carga e Logística (NTC), no caso da Rodovia dos Bandeirantes, que liga a cidade de São Paulo ao interior do Estado, o valor desse pagamento chegou a ser 30% da receita da concessionária. Nesse modelo, o valor da tarifa fica mais caro, porque a empresa embute o valor da outorga no preço cobrado dos veículos.

Os pedágios do leilão de Lula são os mais baixos
já cobrados no Brasil. Eles vão se sustentar?
“O modelo paulista privilegia a arrecadação do Estado, que pode investir o dinheiro da outorga em outras estradas”, diz José Alexandre Resende, diretor-geral da Agência Nacional dos Transportes Terrestres (ANTT). “No modelo deste leilão, o governo deu prioridade à menor tarifa para o usuário e abriu mão dessa arrecadação. O investimento da empresa não muda, porque está previsto no contrato.” Mesmo assim, há céticos quanto à capacidade de as novas concessionárias honrarem seus investimentos com uma tarifa tão baixa.

Outro complicador para as empresas é que o governo também reduziu a taxa interna de retorno do negócio. No início, os empresários diziam que o leilão só atrairia aventureiros, que jogariam os preços para baixo apenas para vencer e, no final, não seriam capazes de cumprir as exigências. Segundo Dilma, a redução na taxa de retorno do investimento forçou as concessionárias a ser mais eficientes e a reduzir sua margem de lucro. Isso seria possível, de acordo com o governo, porque a economia hoje é mais estável. A redução do lucro, porém, tende a reduzir o poder de atração dos negócios para as empresas. O sucesso do leilão deixou uma pergunta no ar: será esse modelo, baseado apenas no valor da tarifa de pedágio, sustentável no longo prazo?

Em todo o mundo, os governos ainda estão à procura de um modelo ideal para a concessão de serviços públicos. Os europeus, mais ricos e desenvolvidos, se destacam pela marcante participação do setor público na concessão de estradas. Ora por meio de empresas públicas que se tornam sócias dos empreendedores, ora por meio de incentivos, subsídios, garantias e financiamentos (leia o quadro). Um levantamento do Banco Mundial mostra como os governos têm dado incentivos e pagamentos para cobrir os custos e compensar os riscos nos projetos de infra-estrutura de que a iniciativa privada participa. Especialmente em estradas. Em 2006, dos 108 projetos fechados em países emergentes, 27% tiveram ajuda governamental. Nos cinco anos anteriores, tal parcela não passava de 8%.

A discussão sobre o papel do Estado não deve obscurecer o principal: aos poucos o governo acabou convencido da necessidade de prosseguir com as concessões de serviços públicos. Com seu pacote de privatizações, Lula mostra mais uma vez entender perfeitamente que governo é muito diferente de palanque. Quando o assunto é governar, Lula é antes de tudo um político pragmático. O Brasil deve agora se beneficiar das privatizações de Lula.

A privatização de Lula
O mapa das concessões de serviços públicos federais
1 - Hidrelétrica Santo Antônio
Rio Madeira (RO) Potência 3.150 MW
Leilão Em novembro de 2007 Investimento R$ 10 bi
2 - Hidrelétrica Jirau
Rio Madeira (RO) Potência 3.300 MW
Leilão Em junho de 2008 Investimento R$ 10 bi
3 - Ferrovia Norte–Sul
Açailândia (MA)–Palmas (TO) Tamanho 720 km
Concessionário Vale do Rio Doce
Investimento R$ 1,4 bi
4 - Linhas de transmissão
Porto Velho (RO)–Araraquara (SP) Tamanho 2.450 km
Leilão Indefinido Investimento R$ 9 bi
5 - BR-381
Belo Horizonte (MG)–São Paulo (SP)
Tamanho 562,1 km Concessionário OHL
Investimento R$ 4,6 bi Valor do pedágio R$ 0,99
6 - BR-393Divisa (MG-RJ)–Via Dutra (RJ) Tamanho 200,4 km Concessionário Acciona Investimento R$ 1,4 bi Valor do pedágio R$ 2,94
7 - BR-101Ponte Rio–Niterói (RJ)–(ES) Tamanho 320,1 km Concessionário OHL Investimento R$ 2,5 bi Valor do pedágio R$ 2,25
8 - BR-153 Divisa (MG-SP)–Divisa (SP-PR) Tamanho 321,6 km Concessionário BR VIAS Investimento R$ 1,7 bi Valor do pedágio R$ 2,45
9 - BR-116 São Paulo (SP) – Curitiba (PR) Tamanho 401,6 km Concessionário OHL Investimento R$ 4,3 bi Valor do pedágio R$ 1,36
10 - BR-116 Curitiba (PR)–Divisa (SC-RS) Tamanho 412,7 km Concessionário OHL Investimento R$ 1,8 bi Valor do pedágio R$ 2,54
11 - BR-116/376/PR-101/SCCuritiba (PR)–Florianópolis (SC) Tamanho 382,3 km Concessionário OHL Investimento R$ 3,5 bi Valor do pedágio R$ 1,02

O que eles fizeram com suas estradas

Argentina
Os argentinos tentaram três modelos de concessão. No primeiro, que privatizou 9.000 km, os pedágios ficaram caros. A população reagiu e o governo suspendeu os contratos. O segundo priorizou o menor pedágio. No terceiro, o governo deu subsídios, aumentou a concessão para 25 anos e garantiu retorno de 16% ao investidor

Espanha
As concessões começaram no fim dos anos 60, com subsídio a investimentos e isenção de impostos. O governo socialista reestatizou tudo nos anos 80. A malha concedida caiu de 3.000 km para 2.000 km. Hoje, há no país oito concessionárias, e o governo é sócio

França
Começou a privatizar estradas na década de 50. Hoje 7.000 km de vias têm pedágios, cujos valores são controlados por uma empresa pública. As estradas são operadas por oito companhias mistas e uma privada

México
As concessões começaram nos anos 80. Nos anos 90, o pedágio se tornou um dos mais caros do mundo. Como havia rotas alternativas às rodovias pedagiadas, o tráfego caiu. O governo reestatizou as estradas. As concessões voltaram em 2006 e o governo passou a assumir riscos do negócio

Fonte:http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI58587-15223,00-ENFIM+LULA+PRIVATIZOU.html

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